Por uma Antropologia Amefricana / For an Amefricana Anthropology
By Aline de Moura Rodrigues (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
Descobri a Antropologia quando tinha cerca de 24 anos de idade, quando acessei pela primeira vez etnografias em um livro de poucas folhas, com o título “Antropologia para quem não quer ser antropólogo”. Encantada pelo ler e pelo escrever, aquilo me instigou profundamente. Não sabia se estava lendo um relato de sentimentos ou se estava aprendendo sobre espiritualidade e poder na gestão das escolas de samba. Foi tudo ao mesmo tempo e me apaixonou. Fui atrás de mais Antropologia e acabei me decidindo por seguir carreira nas Ciências Sociais. Agora que sou estudante de mestrado em Antropologia, ousando me afirmar como antropóloga, as perguntas que me inquietam já são outras. Perguntas feitas por uma jovem antropóloga negra nascida ao sul predominantemente branco do Brasil.
Minhas incursões antropológicas foram pautadas pelas relações entre nacionalidade, gênero e relações étnico-raciais. Com base nestas relações, hoje me pergunto: é possível pensar uma antropologia amefricana? Amefricanidade é uma categoria político-cultural desenvolvida por Lélia González, historiadora, filósofa e antropóloga nascida no Brasil. Segundo a autora, por meio da linguagem racista e iludida de uma europeidade ausente, os projetos de estado-nação constituídos pós invasão colonial buscaram silenciar a africanidade e as cosmopercepções indígenas que já existiam aqui muitos séculos antes, (n) os relegando a nacionalidades criadas com base na ilusão da homogeneidade. Porém, o pretuguês, como diz a autora, expressa o que o mito da democracia racial e da mestiçagem tentaram apagar: o português que falamos no Brasil não é tão europeu quanto se quer fazer crer.
O encontro com esta categoria político-cultural, durante minha formação como antropóloga, frente às semelhanças e distâncias entre mim e os corpos-territórios que ocupam lugares de professores e alunos universitários, foi a chave para organizar os argumentos e perceber a complexidade que constitui as existências contemporâneas no continente conhecido como América Latina. Pesquiso, desde a graduação, as relações entre alteridades do ponto de vista étnico-racial, tentando entender como se tecem as redes de conhecimento ancestral na contemporaneidade. Aprendi e sigo aprendendo isso a partir e com mulheres negras pensantes e escreviventes. Mulheres acadêmicas como Lélia González e Conceição Evaristo, mas também Vera Lúcia Costa de Moura, minha mãe.
Falar sobre os desafios enfrentados neste tornar-se antropóloga passa por entender os limites e possibilidades que a nacionalidade tem imposto a produções antropológicas que rompem as fronteiras, a partir da autodefinição intrinsecamente coletiva que as existências afro-diaspóricas têm. Discutir e se relacionar com os imaginários antropológicos, tanto no âmbito das produções etnográficas quanto das mudanças de rumo do pensamento sócio antropológico no Brasil, é estar intimamente mergulhado nas leituras e feituras de mundo que as africanidades têm mobilizado dentro e fora dos universos acadêmicos. Neste sentido, quando penso minha própria trajetória como existência negra feminina caminhante em conhecimentos antropológicos, é impossível não se direcionar ao incômodo da limitação de leituras que estabelecem fronteiras de aplicação das sugestões antropológicas produzidas por consciências amefricanas. Advogo que existe uma produção antropológica amefricana a ser nomeada e reconhecida, tanto por meio de recuperação dos nomes que foram e são mantidos em esquecimento entre os cânones, quanto em tentativas honestas de incorporar as inquietações de novas etnografias auto descritas como amefricanas. A quem incomoda pensar amefricanamente? Quais os impactos de se pensar uma antropologia amefricana? São questões que considero importantes de compartilhar para este diálogo entre cosmopersepções tão complexas: a ocidental e a afrodiaspórica.
Translated from Portugese by Pedro Silva Rocha Lima
I discovered anthropology at the age of twenty-four, when for the first time I read short ethnographies in a thin book entitled Antropologia para quem não quer ser antropólogo (Anthropology for someone who does not want to be an anthropologist). Captivated by the reading and by the act of writing, I was profoundly moved. I did not know then if I was reading an academic account of sentiments or if I was learning about spirituality and power in the management of samba schools. It was everything at the same time, and that made me fall in love with what I was reading. I went after more anthropology and decided to pursue a career in the social sciences. Now, as a master’s student in anthropology and daring to call myself an anthropologist, the questions that motivate me are different. They are questions formulated by a young Black female anthropologist born in the predominantly white Brazilian south.
My anthropological interest has been on the relationship between nationality, gender, and ethno-racial relations. Based on these questions, today I ask myself: Is it possible to think of an Amefricana anthropology? Amefricanidade is a politico-cultural category developed by the Brazilian historian, anthropologist, and philosopher Lélia González. According to González, the nation-state projects after the colonial invasion sought to silence preexisting Africanisms and Indigenisms through racism, constructing the illusion of a homogenous Brazilian nationality. Nonetheless, the pretuguês (Black Portuguese), as she calls it, designates that which the myth of racial democracy and mestizaje tries to erase: that the Portuguese we speak in Brazil is not as European as we believe it to be.
My encounter with Amefricanidade during my formative stages as an anthropologist, combined with the similarities and differences between me and the body-territories that occupy the position of university professors and students in the Brazilian south, were key for me to see the existential complexities that exist in the continent known as Latin America. So I have researched the relations between alterities from an ethno-racial perspective, trying to understand how it is possible to knead threads of ancestral knowledge in the present moment. I have learned and continue to learn with Black female thinkers and writers: academics such as Lélia González and Conceição Evaristo, but also Vera Lúcia Costa de Moura, my mother.
To speak of the challenges in my becoming an anthropologist is to understand the limits and possibilities that nationality has imposed to anthropological knowledge production, particularly as African diasporic subjectivities intrinsically self-define in a collective way. Within ethnographic knowledge and in the way social anthropological knowledge in Brazil has evolved, to think anthropologically is to intimately dive into the readings and world-makings that Africanities have mobilized inside and outside of academia. In this sense, when I think of my own trajectory as a Black woman in anthropology, I think of my disquiet with readings that impose limits to the application of anthropological knowledge produced by Amefricana perspectives. I argue that there is a form of Amefricana knowledge production to be named and recognized, both by recovering names that have been forgotten by the mainstream and by incorporating new honest attempts at self-described Amefricana ethnographies. To whom does it bother to think in amefricana terms? What are the implications of thinking through an Amefricana anthropology? These are questions that I deem important to share within the proposed dialogue between two complex cosmoperceptions: the Western and the African-diasporic.
BIO
Aline de Moura Rodrigues faz parte do Coletivo Atinùké Pensamento de Mulheres Negras e do GT Cuerpos, Territorios y Resistencias do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO). Atualmente é estudante do Mestrado em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS – 2021/2023). Realizou pesquisa de campo em 2019 em diferentes cidades mexicanas, com destaque para o desdobramento de pesquisa sobre a categoria afromexicanidade e sua relação com mulheres negras em movimento na Costa Chica de Oaxaca, na Cidade do México e em San Cristóbal de Las Casas. Atualmente pesquisa letreamentos sociais por meio da leitura de produções científicas e literárias de mulheres negras da Améfrica Ladina.
Aline de Moura Rodrigues is part of the Coletivo Atinùké Pensamento de Mulheres Negras e do GT Cuerpos, Territorios y Resistencias of the Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO). She is currently a master’s student in social anthropology at the Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS – 2021/2023). She conducted fieldwork in 2019 in multiple Mexican cities, when she focused on the category of Afromexicanity among activist Black women in Costa Chica (Oaxaca), Mexico City, and San Cristóbal de Las Casas. She currently researches the social literacy of Black women in Améfrica Ladina through the reading of their scientific and literary productions.